Memórias

Sábado passado estava assistindo o Serginho Groisman (Altas Horas, TV Globo), quando pensei: que bom que foi o meu caminho até aqui, em termos de leituras, filmes e sentidos que captei de tão variadas formas… Hoje, aos cinqüenta e dois anos, posso dizer, com uma razoável certeza que as pessoas que me conhecem me tem em alta conta, não pelo que eu possua ou deixe de possuir, não em razão do que eu tenha amealhado em termos materiais, mas, especialmente, em face do que eu sou. Com o tempo, creio que fui melhorando como pessoa, embora ainda haja muito muito a ser revisto e, certamente, a ser objeto de crescimento, simplesmente porque não paramos nunca de efetivarmos mudanças que às vezes são tão sutis que mesmo nós (ou principalmente nós) simplesmente não nos damos conta de tais necessidades.

Mas escrevo em razão das oportunidades que me foram dadas, e pelas tantas que criei, mesmo sendo considerado, na minha adolescência, um bicho meio careta e, sem dúvida, estranho. Não fui exatamente um sucesso em termos de conquistas e nem era um desses meninos com os quais as meninas sonham namorar. Então, minha atenção foi se voltando para expandir o meu mundo. Aí começa a melhor parte do que me construiu e me constitui até o momento. É claro que tive afetividades e amores de minha família, e que problemas como teto, lar e materialidades nunca me faltaram: eu era um filho de pequenos comerciantes, algo oscilando entre a baixa classe média e seus sonhos de ascendência e uma realidade que nem sempre era a que se buscava. Havia limitantes e limitações. Mas, como disse, de certo modo eu ia expandindo meu mundo. No entanto, se não tínhamos dinheiro para tanto, o que fazia com que houvesse essa melhoria, essa descontinuidade de prazeres e de obstáculos?

Vivi uma época muito interessante. Lembro que lia o Pasquim, Planeta, Júlio Verne, Érico Veríssimo (As aventuras de Tibicuera e mais tarde, todos os livros do Tempo e o Vento). Antes de ir para a escola, à tarde, ficava ouvindo, com meu padrinho, novelas no rádio, e tudo isso era um exercício para minha imaginação. Com meu pai ia aos jogos do Inter, escutava muita música, cantávamos e navegávamos pela poesia. Na minha época de adolescente, havia bossa-nova, jazz, jovem guarda, e os rádios tocavam músicas italianas, alemãs, enfim, viajávamos por outros locais, por outras línguas, e isso também foi ajudando a que tivesse uma pronúncia razoável em outros idiomas, por outras experiências diferentes de um inglês e de uma tendência a apenas um meio de vida diferente do nosso.

Assistia Rintintin, Bonanza, Jeannie é um Gênio, Papai sabe tudo, e escutar noticiário pelo rádio era algo comum. É claro que existem muitas coisas e muitas possibilidades hoje em dia, mas, o que me construiu tinha a marca do não-óbvio, do não-direto.A maioria dos programas em TV que eu assistia não eram apelativos, até porque sexo, basicamente, se revestia de um certo mistério interessante. Sexo era algo que tinha algo a ver com pecado, com gavetas escondidas, com algo tabu, proibido. Se era bom? Não sei, mas não me lembro, criança pequena, de ver cenas picantes na TV; ao invés disso, os programas mais se preocupavam com ideologias e sentidos de vida.

Mas muito do que assisti, tenho certeza que as gerações mais novas não experimentarão, desde fatos absolutamente triviais a outros, de cunho mais sério e histórico.  Havia novelas no rádio.  Bobagem? Nem tanto. Não tendo a imagem, tinha a imaginação, tinham os sons que indicavam e eram marcadores das ações. Imaginava o rosto dos personagens, os cenários, o desenrolar da trama, e isso, queiram ou não, junto com a supressão da imagem era um excelente ativador criativo. Assim, não recebia passivamente imagens, mas estruturava uma rede, um encadeamento de ações que eram produto das minhas reflexões. Assisti os famosos festivais de televisão.

Então vamos lá: amostra grátis!

Beatles, Roberto Carlos, MPB, Jovem Guarda, Maria Bethânia, Batman, Pasquim (todas as edições, infelizmente perdidas no mundo), Realidade, Mundo da Criança, todas as obras de Monteiro Lobato, O Conde de Monte Cristo, O Tempo e o Vento, Mário Quintana, Bossa Nova, Guerra de 67 de Israel x Vizinhos (ou o contrário), exame de admissão (rodei para entrar no Julinho), perdas, danos, lutos (todos, de diversas ordens), namoros escondidos, mentiras, ajustes, jogos de corpo, Beira-Rio x Olímpico, último jogo no Campo dos Eucaliptos, sinagoga, bar mitzwa, goyim, ídiche, Revista Planète – que seguiu o mesmo rumo da coleção do Pasquim…-, jogo de bola, eu de zagueiro mas fazendo meus golzinhos improvisados, amigos queridos e guris chatos pra caramba, frio no inverno, uma delícia o outono, tempos e estações seguindo seus ritmos naturais, música, música, leitura, primeira copa do mundo em cores, meus pais, meus padrinhos, o mundo pela frente, o que fazer?

Há, enfim, centenas de referências que foram construindo o que hoje sou. Mas, sem dúvida, embora não houvesse uma tecnologia tão absolutamente presente em nossas vidas, havia tempo e oportunidade para sentarmos à calçada após um dia de trabalho e, para as crianças, tempo para brincar, jogar bola, jogar bolita e imaginarmos o que iríamos fazer no dia seguinte, fosse na escola ou fora dela. Não se trata de saudosismo, simplesmente, mas de notar o quanto as coisas hoje são diferentes. Existe toda uma pedagogia para o consumo, toda uma mídia para a venda e para a exploração comercial. Parece que algo se perdeu por aí, no meio do caminho: o que quer que seja, no entanto, é demais importante para ser relegado e, menos ainda, para ser esquecido.

PUBLICADO HÁ SEIS ANOS ATRÁS, em 2006. Hoje tenho 58. HILTON BESNOS. E HOJE, DIA 01 DE AGOSTO DE 20013, CONTINUO COM A MESMA IDADE.

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